Ernesto




- Ernesto, porque nunca falas comigo? - e ela a ser escrita, cada vez mais escrita.

pousou a chávena de café, antes mesmo de pensar que detestava a chávena escaldada. guardou a colher dentro do pacote de açúcar, hábito ganho em países estr
angeiros que não sabia quais. de um trago, como hábito, bebeu o café e fez-se de novo ao livro.

- eu estou a falar contigo.

a moleskine, que ainda não tinha esse nome, não tinha linhas para a clareza e estética do escritor. um caderno vadio, sem campos de espaço, como se escrever fosse desenhar acontecimentos, desenhar passagens.

- mas nunca me falas de amor.

queria explicar sem uso de nada. pensar e nesse acto único e singular - pensar - ser compreendido. nunca haveria palavras. o pensamento não se escreve.

- passas o tempo de costas para mim, todo metido dentro da tua sabedoria.

tinha a certeza romântica de ter perto o rosto mais bonito da literatura. a noção, compreensão, quase musical, quase clássica de ter perto a mulher mais incompletamente perfeita. como se gostar fosse não sentir absolutamente nada. e no entanto sentia o mundo inteiro. gostava no verbo presente. um amor diabético. um amor tanto. uma percepção correcta de que nunca haveria folhas suficientes. a contradição de amar e não ter.

- nem por uma única vez disseste o meu nome alto.

e nunca haveria de dizer o nome. para não estragar o jardim que crescia dos olhos. nunca haveria de escrever sequer.

- vou deixar-te e tu nem te apercebes disso.

preferia assim. dizer o nome seria morrer. os poetas não sabem morrer. nunca souberam. vivem constantemente nas escadas dos amantes. nos parapeitos dos amantes. nas cartas dos amantes rejeitados. os poetas não sabem morrer.

- adeus Ernesto.

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