A estante

Ocorreu-me olhar a minha estante de livros. Tinha-os numa ordem escolhida. Para os encontrar como se encontram os discos, por ritmos. Tentando comprovar uma ciência literária indiscutível. Uma teoria espelhada na dimensão de dois objetos diferentes. Livros e discos unidos apenas pela utilização de linguagem.

[os livros foram escritos através de som]

A estante empurrava os tomos de Lenine para perto da educação segundo João dos Santos. E quase que os parágrafos se confundiam. Literatura sem estética essa das palavras para a investigação. A política das igualdades agregada à infância dos professores. Era isto o que acontecia na minha estante.

[os livros empurram-se]

Ao colocar música na minha biblioteca pessoal, percebi que o caminho se encurta até ao papel impresso há longos tempos. Como se os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes fossem de agora e não desse tempo em que não se podia lembrar a infantilidade de ser Homem. Como se a banda sonora pudesse viver no ar e os escritores respirassem diferente.

[os livros aprendem-se a respirar]

Na estante, os meus livros eram de outra pessoa. Imaginei que resistissem à minha vaidade. Que os anos pudessem esquecer que uma pessoa havia escrito com um propósito maior que a ostentação. E logo eu que transpiro das mãos quando lembro que tenho outros mais livros para escrever. Um romance, um trabalho que custa a acreditar que venha a acontecer.

[escrever um romance é a imortalidade]

Agora que deixo para trás a ideia de que poderia escrever, ocorre-me novamente olhar para o resto da estante, estanque, recta, desenhada por alguém que se calhar nem gostaria de livros, ou que talvez não gostasse de os folhear, antes, de passar uma vista de olhos digital. Um arquiteto de estantes de livros que não fazia ideia que os sonhos caberiam loucamente, mesmo que a estante vazia, a imaginar-se repleta de pensadores pelas palavras, de Homens que respiram diferente porque roubaram aos outros o que estes deitaram fora há demasiado tempo.

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