A música dos outros

o surdo do terceiro andar tinha um hábito ao domingo de manhã. daquelas coisas que só acredita quem sofre dos mesmos males. um gesto repetido só porque as mãos não ganham agilidade, só porque os dedos gostam de repetições.

o surdo do terceiro andar levantava a tampa do gira discos, sem desviar o pó, sem estar minimamente preocupado com o rigor das coisas. levantava a tampa do gira discos, recortava com os olhos, como se escolher fosse arregalar os olhos, a colecção organizada na estante, e antes de acertar com a ampulheta no disco, ampliava-se em tormentos a imitar a guitarra do artista. assim mesmo no deserto da sala, a imitar o orgasmo do guitarrista, a imitar os dedos nas cordas como em seios.

o surdo do terceiro andar ouvia Paco de Lucia ao domingo de manhã. era o habito. era qualquer coisa. eram muito mais coisas. era o seu cadeirão roído pela fome dos ratos. era a fotografia por cima da lareira. era o fio de prata pendido sobre a fotografia. era o lenço de bordados na sua mão. era o nome perpetuado no braço direito. Hermínia. 

o deserto da sala e Paco de Lucia a mostrar o Tico Tico, cheio de velocidade. uma correria imensa nos ouvidos surdos do pequeno homem de lenço de bordados na mão. o Tico Tico a galopar nas cordas incessantes, as paredes a estremecerem em gritos de recordação. o surdo que dançava pelas vibrações do fio de prata pendido sobre a fotografia. 

o Tico Tico a escrever-se na ponta dos dedos do Paco de Lucia, e a menina da fotografia, a Hermínia, a mover-se nos retalhos do tempo. a segurar-se na saia e a flutuar, pequena de pernas, larga de ancas, delicada de ombros, bonita por dentro. a Hermínia sedutora, a ser todos os domingos de manhã, na hora dos contos, a permanecer completa perto do cadeirão roído ainda não roído pelos ratos. 

e o surdo do terceiro andar, de olhos embargados, a colocar-se nas entre linhas das fábulas, a inventar sons que pudesse ouvir, a desenhar ritmos pelas vibrações, a pensar os sons em forma de cores, a guitarra de Paco de Lucia como um lápis de cores misturadas, uma pauta na atmosfera e o ouvido a cheirar as maravilhas da música.

era o hábito de domingo de manhã. daquelas coisas que só acredita quem sofre dos mesmos males.

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