Aos oitenta e oito anos ainda se é novo para morrer

Um mês é tanto tempo que nos esquecemos de dizer adeus. São perto de trinta dias em que acordamos cedo, com as reclamações próprias de quem gostava de continuar de olhos fechados, não para descansar mas para regressar a esse lugar onde pensamos que tudo acontece porque os sonhos e a imaginação.
Hoje é um dia triste para quem acordou. Sobretudo para a senhora Albertina que teve de se levantar cedo demais, para ter tempo de escolher qual dos vestidos pretos ajuda-la-ia a sair de casa menos curvada. Um qualquer tecido, igual à cor do coração.
A senhora Albertina, de flores cravadas no peito, doente de uma doença para a qual ainda não se inventaram remédios ou tratamentos. A porta a soltar-se das dobradiças porque nem os braços conseguem atenuar a força que lhe falta. Uma ajuda divina para que tudo se torne mais leve, menos pesado. A dormência de uma caminhada que não chora já.

[Ninguém merece morrer aos oitenta e oito anos, quando ainda se tem vontade de renascer.]

Há agora uma rua imperceptivel e um mundo que podia acabar. O fato azul, listado na vertical, usado em tantas cerimónias, na utilidade de um casamento, de um baptizado, de um aniversário. O mesmo fato azul, listado na vertical, que vestiu na hora de ser avô, para que o respeito desde cedo fosse implementado. Mas também a ambiguidade das sapatilhas calçadas, porque um homem de fato azul, ainda que listado na vertical, tem de deixar as formalidades de lado para se divertir com os netos. Como se o próposito fosse esse, de ser um amigo mais velho, de cabelo branco, para ensinar aos mais novos que a jornada interminável da vida é feita de passado e de futuro, que o presente já passou quando nele julgamos estar.
Ao cumprimentar a senhora Albertina, sei que ela não me consegue ver. E eu queria mostrar-lhe como tenho o coração partido. Que a dor não escolhe parceiro e que foi pouco o tempo em que estive com ele, mas que foi o bastante para entender a sua dimensão. Queria dizer-lhe que ainda tenho a sua mão encostada à minha a prometer-me que não se iria sem se despedir, sem cumprir com a promessa de almoçarmos na terra que o fez gente.
Mas como sempre, faltam-me as palavras. E nem o abraço que lhe dei senhora Albertina, nem esse foi suficientemente fraterno. Perdi-me na vergonha de chorar porque não tinha o direito de lhe roubar a tristeza. Essa agora pertence-lhe e eu queria poder roubá-la para que não tivesse de acordar amanhã com ela entre as fotografias na mesa de cabeceira. Certamente estarão bem firmes, emproadas a olhar de soslaio, fotografias de quando tudo era simples, de quando as lágrimas derivavam do vento a esbracejar vontades e sonhos por cumprir.

É tarde demais para lamentar o que ficou de si dentro de mim.

Vejo agora a sua esposa no corredor, de vestido preto, traz as flores cravadas no peito, e a tristeza é tal que ninguem mais a consegue ver. Passeia-se transparente pelo corredor do hospital, chama por si, diz o seu nome tão alto que escondo os ouvidos para não me recordar de como era bonito vê-lo pela manhã. A senhora Albertina enfurecida com a vida, com deus, com alguma coisa, com qualquer coisa que o tenha levado. E não há forma de a ajudar. Com o corredor a ficar cada vez mais estreito, a sua esposa espera por um sinal, de certeza, espera por um sinal seu, que diga que volta para a vir buscar, que volta para falar sobre o vento que vos batia nos olhos quando eram novos, de quando não faziam ideia de quão grande seria a vida.



”preparei uma festa no coração /de veias penduradas como gambiarras corpo fora /esperei que viesses / pedi que viesses /mas a alegria que inventei…era só um modo de ir embora”

Gambiarras, por Valter Hugo Mãe

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