O homem que atrasava o tempo

Quando olhou para a janela, embaciada pela termino do dia, esperava ver muito mais do que o rio, muito mais do que a outra margem. Queria olhar para lá das coisas invisíveis, naquele ponto não-existente em que talvez um deus pudesse contar-lhe histórias. Olhou para lá da janela, ainda que o olhar tivesse sempre de roçar o parapeito e estender-se para lá do rio e da outra margem. 
Naquele fim de dia não olhou para o relógio antes de escolher os movimentos. Vestiu os calções como se estes fizessem parte da atmosfera. Escolheu uma camisola que guardara do tempo da escola, uma qualquer mini maratona juvenil em que se tinha destacado por ter sido o ultimo a chegar, elevado pelo gozo carnavalesco dos outros, os que não corriam e que fumavam na meta, na ansia de verem chegar o ultimo dos peregrinos, para se deleitarem nessa constante paródia que é ser adolescente e rebelde.
Por isso, por essas lembranças, o espelho refletiu por momentos esse rapaz demasiado novo que corria para se esconder de uma infância estática que o tempo haveria de corroer. 
A camisola de extremas medidas, largada no seu tronco como se nunca tivesse pertencido a ninguém. A camisola a contar-lhe histórias que nem o deus do outro lugar saberia contar. Histórias de como a vida é soprada devagar mas que empurrada pelo crescimento dos Homens se torna apressada e inequivocamente desumana.
Quando calçou os ténis, batendo-os com orgulho no chão, surpreendeu-lhe a virilidade dos quilómetros galgados. Como se a masculinidade pudesse ser medida pelas distancias que deixamos para trás.
Ao fechar a porta de casa não poderia adivinhar que o tempo como ele o contabilizara não voltaria a cheirar o cheiro da rua. O tempo que nos ensinam a contar quando os seis anos na escola. O tempo que inventado por nós, com um sentido de organização, polindo a nossa vida com as arestas que limitam a longevidade do corpo e do que está por dentro do corpo. O tempo que nos mostra que há sempre qualquer coisa que nos escapa. O tempo que termina quando a morte nos espreita. O tempo.
A porta de casa fazia um pequeno abraço com o rio. O ponto de partida correto para uma viagem de mãos quase dadas com a divindade maior que nenhuma teoria ainda nos conseguiu explicar.

(ponto de partida: o rio)

O primeiro ritmo é aquele que nos mantem a par da condição possível para que possamos chegar ao lugar que nos espera. Um ritmo baixo, portanto. Sem nenhuma pressa de chegar. 
Embalado pela incerteza de uma meta marcada a giz, escondida num qualquer circuito elétrico do cérebro, as pernas começaram a comunicar com o terreno, a fazer amor com a calçada, a afagar o alcatrão. Corria sem saber o porquê. Corria, ultrapassando os outros que não o viam porque um Homem quando se silencia no seu interior é invisível. O silencio como palavra de ordem naquela corrida que nem era isso, era outra coisa que não se escreve. O mais semelhante, talvez uma meditação transcendente. Num estado em que a matéria se separa daquilo que nos faz ser muito mais do que ser somente.
Portanto, mantinha-se a correr. 
Corria sempre pela costa. A confundir-se com o cenário que ordenava outra coisa: contemplação. 
Costa a sussurrar-lhe ao ouvido:
- para onde vais tu que não te encontras? 
E a resposta a queimar-lhe o peito, com um incendio permanente que não do cansaço, mas do esgotamento de viver. A preparar algo para dizer mas a vontade a teimar, a dizer que seria melhor as palavras invulgarmente ausentes.

(as horas não se contam na corrida. os quilómetros na relevância maior.)

Tinha deixado para trás o país.

(e o que é um país?)

Outra língua nas pessoas, outro jeito de olhar, o mesmo estilo corporal de correr. A mesma ausência de tempo. 
Lembrava-se de ultrapassar um espanhol horas antes. Maravilhas do mundo a servirem de paisagem que não lhe importava. Daí ter sido indiferente a meta linguística de entender os que lhe cruzavam o olhar. Era indiferente. 
No entanto, ele a diferenciar-se de si mesmo. Como se fosse esquecendo de como o tempo reagira a tantos quilómetros. O seu corpo alterado, fora os músculos a desenharem curvas que desconhecia. Os braços a contrastarem com as pernas cada vez mais pequenas. O tronco encolhido, inexplicavelmente encolhido. O rosto, que não suportava ver, a embelezar-se na queda dos pelos. O cabelo a ganhar a cor do reflexo queimado do sol. E ele, o homem que atrasava o tempo, a desconhecer esse destino que se rescrevia.

[em algum momento o tempo atrasou-se]

Foi quando deu a volta ao mundo, quando se apercebeu que no horizonte estava a porta da casa que milhares de quilómetros antes deixara para trás. Nesse momento, a filosofia de correr a mostrar-lhe que o Homem quando se silencia por dentro as coisas mais bonitas surgem-lhe de forma surpreendente. 
Quanto mais se aproximava da porta mais estranhamente jovem se sentia. Como se o relógio fosse um instrumento obsoleto e o hoje fosse o ontem. 

[a volta ao mundo tem muitos caminhos.]

Parou.
Também o tempo parou. Ele era agora um adolescente a cortar a meta final. Sozinho. Só ao longe, entre mãos que batiam arduamente umas nas outras, os seus familiares. Entre eles, mais entusiásticos, os amigos que era também mais curtos de corpo. A adolescência recuperada na assistência. E as lágrimas de quem sabe que pode viver tudo novamente.

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