Humberto, professor para lá disso

Ao meu professor Humberto, que descanse.

Vi a morte vestida com o corpo de um homem. A morte que não sabia falar e que mal respirava. Sufocava o corpo do homem com um manto com a cor do vento. A ceifa invisível roçava a barba do rosto e sacudia réstias de vida pelo espaço.
Havia marcas da morte por todo o quarto. A morte suava por dentro e anunciava a ocupação completa do corpo. O homem já não era Homem. Não se lhe ouviam palavras e a única justificação para ainda saber viver era dada pelos olhos semicerrados, assustados por dentro, a chorarem aquilo que não sabem.
Eu sei que vi a morte vestida com o corpo de um homem bom. A morte foge dos assassinos porque são seus semelhantes. Mas deste homem que se reconheciam sorrisos, a morte encharcava-se de maldade.
O corpo do homem não respondia, mas a força dos seus braços prendiam, com ganas, os ferros da cama cada vez menos pesada. As veias abundavam na entrada das mãos e por momentos pequenos era possível ouvir qualquer coisa:
- a morte é passar, como rompendo uma palavra.
Não lhe respondi com vergonha de que não me ouvisse. Com medo que a morte também tivesse ouvidos. O corpo do homem era só isso: um corpo, matéria, carne. Um Homem trespassa esse limite imposto. Este homem sempre fora diferente. Este homem tinha vontade de ficar e eu sem forças para o trazer de volta.
Eu vi a morte com o corpo de um homem. Esse homem era meu amigo.
Não lhe consegui dizer absolutamente nada. Fechei a porte devagar e esperei por hoje.
Hoje já foi tarde.
A morte despiu-se do meu amigo e foi procurar outro inverno. Deixou no quarto um corpo que não serve a mais ninguém. E o meu amigo deve sentir-se sozinho porque deixou a sombra no quarto. no mesmo sitio onde pousou a gravata que voava pela ponta dos dedos, como se fizesse parte do pescoço e da memoria de um peito que dizia coisas bonitas.


“Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.”
Herberto Helder

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