A igualdade da infância

- anda, tu bates bem. se perdermos, que se foda.

A palavra no futebol é igual em qualquer lado. Porque a sua universalidade nasce nas ruas, no alcatrão. Quando os miúdos ainda pouco crescidos, a bocejarem à hora do almoço porque depois a sobremesa, a conversa dos adultos e ainda a digestão demorada. Só depois os amigos e o todos contra todos na Praceta onde não existem mundiais ou europeus; nem Árbitros ou empresários.

[a palavra no futebol é igual em toda a parte]

havia na Praceta da minha rua de nascido um menino com um pé esquerdo fulminante, capaz de fintar os mais velhos, no futebol e na mercearia. Chamávamos-lhe Embaló, mesmo sabendo que o bilhete de identidade não tinha isso escrito. 
O Embaló marcava livres como os soviéticos, com régua e esquadro, cheio de geometria, matemática, ciência. Escolhia um ângulo e deus me perdoe se não havia chamas a pentear a bola. De qualquer sítio, mesmo atrás do escorrega de pedra, sem ter a baliza no horizonte. Só a imaginação e o mundo abstrato de um golo de desenho animado.

[o Embaló era um jogador diferente. Tinha a força de um futebolista da Costa do Marfim, a fria inteligência de um atleta germânico, a técnica de dança dos brasileiros e claro, a cronometrada elegância do futebol português.]

Um dia, naquela tarde de verão de mil novecentos e noventa e quatro, num jogo entre a rua dos betinhos (a nossa) e a rua dos agarrados, quando o resultado já ia em muitos golos empatados, resolveu-se decidir a partida com um pênalti. 

[o Embaló nunca marcava pênaltis porque se lembrava sempre de como falhara uma grande penalidade no dia em que o pai se foi embora para o Luxemburgo e nunca mais voltou]

Mas nessa tarde, era eu ainda um menino demasiado magro, olhei para ele, para dentro dos olhos de saudade, para dentro de tudo o que de mais sagrado há numa criança:

- tens de ser tu a marcar. és o melhor jogador da rua. E se perdermos, que se foda, amanhã jogamos outra vez.

[nesse dia o Embaló falhou o penalti decisivo. Mas também foi nesse dia que o pai voltou do Luxemburgo. Nesse mesmo dia, recordo agora, roubámos dois pêssegos na mercearia do Senhor Jorge e jurámos que no dia a seguir haveríamos de ter tempo para a desforra.]

Hoje sei que o Embaló estará a comer um pêssego ao lado do pai, a torcer por Portugal, talvez até em França, ou se calhar, talvez esteja no campo da nossa infância, a saber que a palavra no futebol é igual em qualquer parte.

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