Sobre a falta da minha avó


Encontrei o teu passado quando visitei a casa onde morreste. Estava à venda por poucos dinheiros, anunciada numa tabuleta que ainda tinha o valor em escudos. Como se ainda tivesses sido tu a escrever, ainda com restos de escamas no rebordo. Ainda que eu não soubesse se sabias as letras todas. Porque o recordo de ti eram as histórias macabras que nos contavas.

[a do Joãozinho renascido da Laranjeira.]

Histórias contadas à beira da tua cama. Porque na minha memória tu vives constantemente deitada, eternamente cansada da vida. Lembro-te compulsivamente deitada por baixo da coberta de floreados, sem a oportunidade de te levantares porque a fraqueza benzida de desgosto era uma máscara que não se desprendia. Desgosto de um filho que há muito se esquecera que a família constrói-se desde o fundo da terra, como plantas, como flores, como árvores, como jardins inteiros. O teu filho que a única coragem que teve foi a de te ver a ser corroída pelo cancro, pela doença dos pesadelos, dos sonhos na escuridão.

[se ao menos ele tivesse ouvido com atenção a história do Joãozinho renascido da Laranjeira.]

Como lamento não me lembrar de ti vigorosa, a dançares pelo corredor, a mergulhares da janela da cozinha para a rua que te fazia levitar, a voares de regresso porque as tuas juras de amor não se estendiam para lá do rio Tejo. Poderia ser diferente a minha vida se a minha recordação de ti não parasse naquela cama onde a morte se alimentava. Que raio de nostalgia esta que não me deixa ver-te mais nova, iluminada pela candidez dos peixes que te davam o cheiro a trabalho.

[e até na história do Joãozinho a morte presente.]

Por vezes pergunto à minha irmã se ainda se lembra de ti. E eu sei que ela se comove quando se repete o teu nome. Como é pesado o teu nome. A minha irmã torna-se vaga quando te descreve, porque também ela era muito nova quando o teu corpo se cansou de viver. Mas dentro do peito da minha irmã tu ainda a fazes sorrir, dentro de tudo o que existe na minha irmã há uma réstia muito grande de ti. Há uma casa que deveria ter sido demolida para não ter o teu espirito preso nas paredes.

Quando imagino que poderias ter sobrevivido, é como se tudo pudesse ter sido mais bonito. Pudesse eu roubar-te da morte e hoje poderias ver como o sorriso da minha filha é semelhante àquele que te fiz quando me contaste a história do Joãozinho.

Por tudo o que escrevo não ser suficiente, por aquilo que quero ainda escrever não ser o que baste para sossegar o passado, deixo-me estar por aqui, à porta do teu prédio, não vá a morte ter-se esquecido que não era ainda o teu tempo de partir.

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