O homem escreve que se farta

A morte é um lugar comum. A guerra colonial tem ainda muitas balas perdidas. O tempo é um espaço que se perde nas mãos de quem o procura incessantemente. A robusta narrativa tem fios que se confundem num novelo que há muito deixou de querer ser percebido. E há uma relação com o pai que deixa antever que nenhum deles morrerá sem uma última palavra.
O homem escrever que se farta e guarda o melhor para quando lhe resta falar. Nos intervalos dos livros, nas conversas que consegue manter, em entrevistas, nesses diálogos em que parece falar consigo mesmo, de dentro para dentro, ultrapassa os limites todos de um pensador que escolhe o momento certo para se eternizar com um par de frases.
Quero lá saber se é arrogante quando se recorda de Celine e se esquece do Saramago. Pouco me importa por agora, se é que alguma vez me irá importar, que idolatre Conrad e nunca tenha ouvidos para os livros do Virgílio Ferreira. Isso é para nos enganar, para nos fazer pensar que a escrita nos tempos de hoje é o reflexo no espelho de um russo que nos acena do outro lado.
Esta semana atravessou-me o corpo com uma frase que anda a fugir-me das mãos: “…tenho medo que isto tudo um dia acabe.”
Por causa do jornal e do seu rosto, ando sem vontade de escrever.
Porque a frase, sem contexto agora, foi utilizada à margem de uma manobra de diversão, na tentativa de enganar o leitor, para o colocar no seu lugar de espectador perante a finitude da escrita do Antunes autor. A morte decadente do autor e, por conseguinte, do Homem.
Guardo para mim a frase e alguns livro do Lobo Antunes. Guardo a frase bem dentro e os livros ainda por abrir. Não quero ler a obra inteira enquanto só tiver trinta e um anos, porque se o fizer, o que guardarei para os anos todos que virão depois do ultimo?
O homem escreve que se farta. Nem a porcaria do cancro conseguiu roubar a imaginação vivida. Essa coisa monstruosa que enterraria qualquer outro escritor para a cova, para o cemitério dos grande autores. O cancro que conversa com ele em tantas crónicas, quase amaldiçoando a obra que passa e que fica.

Estou acordado às quatro horas e cinquenta minutos e a frase. Não sei o que posso fazer com ela. Noutra altura escreveria um conto com esse pontapé de saída. Hoje não me apetece escrever nenhum conto, nem pegar no romance que está escondido entre pastas, a pedir para ser escrito, a pedinchar que o termine.
Hoje tenho a frase do António Lobo Antunes a repetir-se. Uma frase que traz consigo outras tantas que poderia citar sem qualquer problema. Uma frase que carrega um interminável numero de figuras e símbolos: a morte, a guerra colonial, o tempo, a relação com o pai.

Enquanto quero terminar este texto, a estas horas, penso na minha mulher que talvez durma, na minha filha que ainda não nasceu, na casa que se constrói, nos livros que vou escrever, na frase, em tudo isto junto. Penso que também eu tenho medo que um dia tudo isto termine, sem ter tido a oportunidade de dizer às pessoas que me possam ouvir, que tudo isto me faz imensa falta. Mesmo que não tenha ainda vivido os anos suficientes para ler a obra completa do Antunes. E não que isso possa fazer alguma diferença, mas pelo menos é um começo.

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